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                   Foto : Charlie 
                    
                  VIAGENS DE ANTONIO MIRANDA PELO BRASIL  
                  LEMBRANÇAS  DO SUL - RIO GRANDE DO SUL  
                    [ 09-12-1985 ] 
                    
                  Os  caminhos do sul eram os caminhos da prosperidade.  
                    O Brasil pujante, de vanguarda ia de São Paulo aos pampas gaúchos. Um Brasil  “europeu”, com sotaque estrangeiro e costumes exóticos que a gente sabia pelo  romance de Érico Veríssimo, pelas excentricidades literárias do Oswald de  Andrade e pelas canções do Conjunto Farroupilha.  
                   
                    Eram os imigrantes italianos, alemães, poloneses. Gente de olho azul, estatura  gigantesca e cabelos de milho. 
                    Igual a eles só na Polícia do Exército — P.E.   que desfilava com garbo prussiano pelas ruas do Rio de Janeiro, quando  ainda era a Capital Federal, desde os tempos de Getúlio Vargas. Dizem que os  sulistas eram uma raça valente, leal, machista e bonita. 
                   
                    Um dia decidi “descer” ao sul ignoto, desvendar o mistério.  Sem dinheiro, com a cara e a coragem. Estava  desempregado, esperando o tempo de prestar o serviço militar. Era o início do  ano de 1959 e o Rio de Janeiro ardia em brasa. Eu morava no Rio Comprido, nas  bordas iniciais da Tijuca, numa casa empilhada de uma ladeira íngreme,  construída por meu pai. Cercado de livros, de quadros, recebendo visitas de  amigos “roqueiros” (na época eram apelidados, depreciativamente, de “juventude  transviada”). 
                   
                    Numa vitrola de agulha de aço ouvíamos discos   “78”, “extended playings” e “long plays” de Elvis Presley, Little  Richard e Pat Boone.  Escrevia poemas  concretistas e diários erótico-filosóficos, numa desesperada ânsia de ser e  acontecer. 
                   
                    Um de meus colegas era o Sebastião.   Gostava de rock e de samba, usava minhas roupas modernosas emprestadas e  saíamos como “irmãos” siameses pois os jovens se identificavam, na intimidade  do relacionamento, inventados como “irmãos de fé” e primos de circunstâncias,  segundo o grau de intimidade e simpatia. Eu tinha meus 18 anos e o Sebastião  apenas 16, ele atlético enquanto eu não... Moreno, inteligente e de pouca  instrução, morando com um pai viúvo e pobre em uma das casinhas por detrás do  bairro antigo da Lapa, nas ladeiras que vão para Santa Teresa.  
                    Sebastião achava melhor a gente fugir de casa. Precisei de mil subterfúgios  para o meu pai me entregar as precárias economias que eu tinha com ele, fruto  de alguns trabalhos sazonais.  
                   
                    Saímos da rodoviária do Rio, na Praça Mauá, rumo a São Paulo se de lá, de trem,  para Porto Alegre. Viagem longa, interminável, com a mutação lenta da  vegetação, até  atingir as regiões ainda  cobertas por matas intensas de araucárias no Paraná  e no norte do Rio Grande do Sul.  
                    Já registrei estes episódios em outras páginas dispersas mas a gente volta  sempre às mesmas fotos, revelando-as, “medindo-as”, interpretando na ação  ruminadora típica de nosso convívio. Fatos atuais e passados se cruzam e são  interpretados em nosso subconsciente. Viver e reviver são paralelos  e tangentes permanentes.  
                   
                    O trem parava em estações diminutas, cruzava pontes e vales, soltava fuligem e  apitava. Daquelas imagens de sequências repetidas, quase monótonas, de  espreitas e descobertas, enchi páginas de impressões, perdidas em algum lugar  do mundo, em minhas andanças posteriores.  
                    TRIGO TREM TRIGO TREM TRIGO TREM TRIGO TREM  
                    composição onomatopeica de inspiração concretista, daquela viagem de olhos e  ouvidos modernistas... 
                    Era um país de cartão-postal que se descortinava aos meus olhos de poeta  iniciante.  
                   
                    Descemos em Canoas (RS), no meio da noite. A velha estação era silenciosa e  deserta no fim da madrugada. Achamos melhor ficar nos arredores da grande  cidade, antes de atrever-nos a explorá-la.  
                   
                    Pela manhã fizemos uma amizade com um garoto. Trocamos impressões e ideias  sobre as nossas cidades e o contato com “cariocas” era, naquela região de  poucas estradas, acontecimento ou experiência interessante. Queríamos encontrar  um lugar para guardar nossos pertences. A família dele nos brindou um café da  manhã com pão caseiro e chimarrão. Era uma casa de madeira como a maioria das  do bairro, às margens da estrada piçarrada que levava a Porto Alegre.  Havia trechos asfaltados e surgiam  indústrias  e bairros-dormitórios e a  casa dos Bertolucci era simples e acolhedora. A dona da casa tinha muitos  filhos, todos varões atléticos e saudáveis. O pai deles era um coronel da base  aérea, casado com outra mulher.  
                   
                    Acabamos ficando lá por quase três meses. Acolhida generosa.  Um jornal local publicou uma pequena  reportagem sobre a nossa “viagem cultural”.  
                   
                    Fizemos amizades em Porto Alegre, sobretudo com gente ligada ao teatro. Não me  lembro os nomes, apagados da memória por falta de contatos posteriores. Um  velho ator da cidade nos convidou para ver uma peça que estava montando no  Teatro São Pedro, na tentativa de criar uma companhia teatral profissional  estável na cidade.  Se não falha a  memória era uma comédia. Vimos também um jogral universitário declamando poemas  de Carlos Drummond de Andrade e de outros poetas. O diretor era um jovem  talentoso chamado José Wilker, celebrizado anos depois pelo cinema e pela TV.  Ele nos recebeu com simpatia e nos deixou ver o espetáculo de graça. O nível do  espetáculo era bom e cheio de artimanhas teatrais, que ia dos efeitos de voz em  coro (a la Swingle Singers) dos movimentos de mímica.  
                   
                    Porto Alegre já tinha o seu aspecto de grande cidade, com os primeiros grandes  edifícios no casco central da urbe.  
                    O burburinho de gente era mesmo na rua da Praia, com cafés em um deambular de  compradores e flertadores recorrentes. Fiquei muito impressionado com o  modernismo da arquitetura  do Hipódromo  do Cristal e com a verticalidade emergente da Avenida Farroupilha.  
                   
                    Eu passava horas lendo na Biblioteca Pública ou nos bancos da Praça da  Alfândega, fazendo amigos. A cidade já era perigosa, mas nada comparada com os  horrores de anos posteriores, na área do porto e na rua Riachuelo, antro de  malandros e prostitutas.  
                   
                    O carnaval foi decepcionante para quem vivera, até então, a intrepidez do  carnaval de rua do Rio de Janeiro, da Praça XI à Cinelândia.  
                   
                    Quando decidimos voltar ao Rio de Janeiro, o verão já estava em retirada. A  estrada estava ainda em obras.  
                    De carona em carona fomos a São Leopoldo, a Novo Hamburgo e Caxias do Sul,  pernoitando em casas de família, uma delas de imigrantes alemães que nem  falavam ainda a nossa língua.  
                   
                    Foram dias de viagem! Sentimos um frio na serra e o calor do meio dia. Vimos  plantações de uva e o gado europeu, estranhos a nossos olhos cariocas. Em  Vacaria é que sentimos o Rio Grande das bombachas e das churrascadas, comendo  com os caminhoneiros na beira da estrada. Assim também em Lages e nas cidades  do percurso.  
                    Guardei durante anos uma mochila de lona e couro que o velho Schier, o  patriarca, fez para mim em sua loja em Curitiba, para a viagem de regresso, em  um avião da FAB, que nos ofereceram através de amigos. Inesquecível!!! 
                
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